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domingo, 17 de agosto de 2014

ADAMASTOR - Dos Lusíadas - CAMÕES

Desenho de Romeo Zanchett 
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ADAMASTOR 
 Porém já cinco sóis eram passados, 
Que dali nós partiramos, cortando 
Os mares nunca doutrém navegados, 
Prósperamente os ventos soprando, 
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora prôa vigiando, 
Uma nuvem, que os ares escurece, 
Sobre nossas cabeças aparece. 
Tão temerosa vinha e carregada, 
Que pôs nos corações um grande medo; 
Bramindo o negro mar de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo, 
"Ó Potestade" disse "sublimada",
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta, 
Que mor causa parece que tormenta!
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Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida, 
De disforme e grandiosíssima estatura, 
O rosto carregado, a barba esquálida, 
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida, 
Cheios de terra e crespos os cabelos, 
A boca negra, os dentes amarelos. 
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Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rhodes estranhíssimo Colosso, 
Que um dos sete milagres foi do mundo. 
Com tom de voz nos fala horrendo e grosso, 
Que pareceu sair do mar profundo: 
Arrepiam-se as carnes e ocabelo
A mim e a todos só de ouví-lo e vê-lo. 
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E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes coisas, 
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, 
E por trabalhos vãos nunca repousas, 
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas, 
Que eu tanto tenho ha já que guardo e tenho, 
Nunca arados de estranho ou próprio lenho, 
Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do húmido elemento, 
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento, 
Ouve os danos de mim, que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento
Por todo o largo mar e pela terra
Que ainda hás de subjugar com dura guerra. 
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Sabe que quantas náus esta viagem, 
Que tu fazes, fizerem de atrevidas, 
Inimigas terão esta paragem
Com ventos e tormentos desmedidas; 
E na primeira armada que passagem 
Fizer por estas ondas insofridas, 
Eu farei de improviso tal castigo, 
Que ja maior o dano que o perigo. 
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Aqui espero tomar, se não me engano, 
De quem me descobriu, suma vingança, 
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança; 
Antes em vossas náus vereis cada ano, 
Se é verdade o que meu juízo alcança, 
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que menor mal de todos seja a morte. 
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E do primeiro ilustre que a ventura
Com fama alta fizer tocar os céus, 
Serei eterna e nova sepultura
Por juízos incógnitos de Deus. 
Aqui porá da Turca armada dura 
Os soberbos e prósperos trofeus; 
Comigo de seus danos o ameaça
A destruída Quilôa com Mombaça. 
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Outro também virá de honrada fama, 
Liberal, cavaleiro e namorado, 
E consigo trará a formosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado. 
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que duro e irado
Os deixará de um cru naufrágio vivos
Para verem trabalhos excessivos. 
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Verão morrer com fome os filhos caros, 
Em tanto amor gerados e nascidos; 
Verão os Cafres ásperos e ávaros
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e perclaros
À calma, ao frio, ao verão despidos, 
Depois de ter pisada longamente
Com os delicados pés a areia ardente. 
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E verão mais os olhos que escaparem 
De tanto mal, de tanta desventura, 
Os dois amantes míseros ficarem
Na férvida e implacável espessura; 
Ali, depois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura, 
Abraçados as almas soltarão
Da formosa e misérrima prisão. 
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Mas ai por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando alçado
Lhe disse eu: "Quem és tu? que esse estupendo 
Corpo certo me tem maravilhado."
A boca e os olhos negros retorcendo
E dando um espantoso e grande brado.
Me respondeu com voz pesada e amarga
Como quem da pergunta lhe pesara:
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"Eu sou aquele oculto e grande cabo
A quem chamais vós outros Tormentório, 
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo, 
Plínio, e quantos passaram, fui notório. 
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto promotório,
Que para o polo Antártico se estende; 
A quem vossa ousadia tanto ofende. 
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Fui dos filhos aspérrimos da Terra, 
Qual Encelado, Egeo e o Centímano;
Chamai-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os ráios de Vulcano; 
Não que pusesse serra sobre serra
Mas conquistando as ondas do Oceano
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de netuno, que eu buscava. 
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Amores da alta esposa de Peleo
Me fizeram tomar tamanha empresa; 
Todas as Deusas desprezei do céu
Só por amar das águas a Princesa. 
Um dia a vi, com as filhas de Nereo
Sair nua na praia, e logo presa
A vontade senti de tal maneira, 
Que ainda não sinto coisa que mais queira. 
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Como fosse impossível alcançá-la
Pela grandeza feia de meu gesto, 
Determinei por armas de tomá-la,
E a Doris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mim lhe fala;
Mas ela com formoso riso honesto
Respondeu: "Qual será o amor bastante 
De Ninfa que sustente o de um Gigante? 
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Contudo por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que com minha honra, escuse o dano."
Tal resposta me torna mensageira. 
Eu que cair não pude neste engano
- Que é grande dos amantes a cegueira - 
Encheram-me com grandes abundâncias 
O peito de desejos e esperanças.
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Já nescio, já da guerra desistindo, 
Uma noite de Dóris prometida
Me aparece ao longe  o gesto lindo
Da branca Thetis, única, despida. 
Como doido corri, de longe abrindo 
Os braços, para para aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos. 
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Ó que não sei de novo como o conte! 
Que crendo ter nos braços quem amava, 
Abraçado me achei com duro monte
De áspero mato e de espessura brava. 
Estando com penedo à fronte, 
Que eu pelo rosto angélico apertava, 
Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo, 
E junto de um penedo outro peneo. 
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Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano, 
Já que minha presença não te agrada, 
Que te custava ter-me neste engano, 
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? 
Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da deshonra ali passada, 
A buscar outro mundo onde não visse 
Quem de meu pranto e de meu mal se risse. 
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Eram ja neste tempo meus irmãos
vencidos e em miséria estrema postos, 
E por mais segurar-se os deuses vãos, 
Alguns vários montes sotopostos. 
E como contra o Céu não valem mãos, 
Eu que chorando andava meus desgostos, 
Comecei a sentir do fado amigo
Por meus atrevimentos o castigo. 
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Converte-se-me a carne em terra dura, 
Em penedos os ossos se fizeram, 
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam; 
Enfim minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os Deuses, e por mais dobradas mágoas
Me anda Thetis cerdando destas águas. 
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Assim contava, e com medonho choro 
Súbito de ante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e com sonoro 
Bramindo muito longe o mar soou.
Eu levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros 
Casos que Adamastor contou futuros. 
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BREVE BIOGRAFIA DE CAMÕES
                   Luiz de camões, o mais ilustre dos poetas portugueses, nasceu em Coimbra ou Lisboa, provavelmente no meio do terceiro mes do século XVI. 
                   A sua vida foi cheia de aventuras e adversidades, tendo frequentado por pouco tempo a corte de D. João III, da qual teve de se ausentar, segundo alguns autores, por causa de seus amores com D. Catarina de Ataíde, a dama da Rainha, que o próprio poeta imortalizou sob o nome de Natércia, teve de partir para Ceuta, onde perdeu um olho numa batalha com os mouros. Depois de ter estado preso em Lisboa durante um ano, no qual compos o primeiro canto dos Lusíadas. Partiu para aÍndia em 1553, tomando parte em várias expedições militares. Em Macau completou seis contos do poema, e, chamado a Gôa, naufragou na costa do Cambodja, salvando-se a muito custo, a nado, erguendo no braço esquerdo acima das ondas o manuscrito do seu poema. Durante algum tempo viveu entre os Budistas do cambodja; depois conseguiu chegar a Málaga e dai a Gôa em 1560. 
                   Em 1569 regressa definitivamente a Liboa, onde morre a 10 de junho de 1580.
                    Além dos Lusíadas escreveu também três outros: El Rei Seleuco, Anfitrião e Filodemo, além de um grande número de sonetos, canções, eclogas, elegias, odes, sextinas e oitavas, entre as quais verdadeiras obras primas. 
Nicéas Romeo Zanchett